Rodrigo Conçole

DISCUTINDO A NOÇÃO DE VERDADE HISTÓRICA POR MEIO DA LITERATURA: ALGUMAS REFLEXÕES A PARTIR DO ROMANCE HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA DE JOSÉ SARAMAGO

Rodrigo Conçole Lage (UNISUL)



Introdução

O que é a verdade dentro da História? Como lidar com as diferentes versões de um determinado fato histórico em sala de aula? Como trabalhar com o aluno essa questão. Com o surgimento da internet e a facilidade de acesso a informação que ela nos dá o professor que se limitar a ser um mero reprodutor de fatos corre o risco de não despertar o interesse dos alunos e se tornar irrelevante.
Diante desse fato o professor deveria buscar alternativas, repensando sua atuação, não se vendo mais como um mero reprodutor de uma determinada visão da História, mas como alguém que pode realmente contribuir para a formação dos alunos como cidadãos verdadeiramente críticos e reflexivos.  Com esse objetivo, entendemos que questionar a noção de verdade deve ser o primeiro passo para aqueles que desejam seguir por esse caminho.

Discutindo a noção de verdade histórica

A noção de verdade é um dos pilares do ofício do historiador. Desde a antiguidade a História está pautada na escrita de fatos reais, daquilo que teria realmente acontecido e não naquilo que poderia ter acontecido. Esse fato é o que distinguia a história da literatura. Em sua Poética Aristóteles (1966, p. 50) afirma:

Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser histórias, se fossem em verso o que eram em prosa), - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder.

Contudo, essa ideia de verdade tem sido contestada na contemporaneidade. Esse questionamento está baseado na convicção de que o fato histórico não existe em si mesmo, ele é "uma construção, um discurso elaborado por quem escreve os textos" (ROIZ; SANTOS, 2012, p. 281).

Partindo desse fato o professor que deseja contribuir de forma eficaz para a formação dos alunos não pode se limitar a ser o mero reprodutor de uma determinada visão dos acontecimentos. Ele deve procurar levar o aluno a perceber como a História é construída e assim ser capaz de refletir a respeito desse processo de construção, da ideologia que está por trás desse processo.

Ao mesmo tempo, acreditamos que o diálogo interdisciplinar com a literatura pode ser uma forma eficaz de trabalhar a questão e, juntamente, procurar despertar o interesse pela literatura, contribuindo assim para a formação de novos leitores. Para isso, escolhemos trabalhar com o romance ‘História do cerco de Lisboa’ de José Saramago.

História do certo de Lisboa e a falsificação da História

Como muitos alunos, e mesmo professores, podem não conhecer o escritor apresentaremos um breve resumo. A obra de José Saramago, publicada em 1989, narra a história do revisor Raimundo Benvindo Silva que, um dia, ao revisar o tratado histórico intitulado História do Cerco de Lisboa introduz um "não", alterando assim a versão oficial da história:

É evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como (Saramago, 1989, p. 50).

Esse ato introduziu alterações em sua vida sendo que a mais importante foi o fato da editora contratar Maria Sara como diretora dos revisores. Ela vai incentivar Raimundo a escrever uma nova versão da história a partir dessa ideia de que os cruzados não ajudaram a reconquistar Lisboa.

Com o passar do tempo os dois vão se apaixonar e essa paixão vai ser representada na história que Raimundo está escrevendo por meio do romance entre o protagonista, Mogueime, e Ouroana. Em linhas gerais, essa é a história do livro. Na seqüência iremos discutir dois pontos a serem trabalhados no que diz respeito a questão da falsificação da história.

Em primeiro lugar é preciso destacar o fato de o "não" introduzido pelo revisor não foi algo inventado, mas feito baseado em fontes históricas como, por exemplo, a carta Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) de Osberno: "a informação é de boa origem, diz-se diretamente do célebre Osberno" (Saramago, 1989, p. 124).
Assim, o que temos são diferentes versões do fato e essa divergência deve ser utilizada pelo professor para se discutir a ideia de verdade. Incluímos nas referência uma edição da carta que pode ser acessada na internet e trabalhada pelo professor que pode propor aos alunos uma pesquisa para verificar até que ponto a história oficial e o relato da carta são divergentes.

Outra opção, para um trabalho interdisciplinar com a literatura, seria uma comparação do relato da carta com a nova versão da história escrita pelo protagonista de Saramago. Esse tipo de trabalho poderia ser realizado pelo professor de literatura em um trabalho conjunto com o de história.

Outro fato que pode ser discutido é a questão dos excluídos da História. Se durante muito tempo a História estava voltada para os grandes homens e grandes feitos, deixando de lado grande parte da humanidade, a história na contemporaneidade tem procurado resgatar os que foram dela excluídos, apresentando assim outra visão dos fatos, procedimento também utilizado pelo escritor:

Um outro momento da obra em que Saramago utiliza a fonte medieval "A conquista de Santarém" é o trecho no qual é mencionada a personagem histórica Mogueime, que depois se tornará um dos protagonistas do livro que Raimundo Silva escreve como versão alternativa ao cerco de Lisboa que as fontes factuais registram. Mogueime foi um soldado lusitano que participou da batalha em Santarém e que, por ser mencionado na crônica de D. Afonso Henriques, possui uma notoriedade histórica mínima (...) (MATIAS; ROANI, p. 6-7).

Os alunos devem tomar consciência de que determinados grupos e pessoas não foram (estão) inseridos na História. Esse tema pode ser desdobrado pelo professor em muitas questões, tais como: Por que isso acontece (u)? Até que ponto essa exclusão falsifica ou distorce a História? Qual o caráter ideológico dessa exclusão? O que pode ser feito para mudar essa situação?

Tais questionamentos podem servir de ponto de partida para a discussão da confiabilidade dos fatos históricos. Podemos dizer que esses são os dois principais pontos para os que desejarem trabalhar com esse tema.

Conclusão

Como vimos, a questão da verdade na história sofreu importantes transformações. Acreditamos que tais questionamentos não devem ficar restritos ao âmbito historiográfico, mas devem ser levados para as salas de aula. A partir dos questionamentos desenvolvidos ao longo do texto o professor tem uma base a partir da qual possa trabalhar com os alunos e desenvolver novas problemáticas.
Ao mesmo tempo propomos um enriquecimento do ensino da História a partir do diálogo com a literatura. Nossa intenção ao discutir a questão da verdade não é esgotar o assunto, mas apresentar algumas propostas de trabalho que podem levar a outros assuntos como, por exemplo, a questão da construção do conhecimento ou dos usos da história. Com isso o ensino da História poderá ser relevante não só para a formação dos alunos mas também dos próprios professores.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
BRAWDSEY, Osberto de. A Conquista de Lisboa aos Mouros, 1147. Disponível em:
Acesso em: 13 dez. 2015.
GUTERRES, Tiago da costa. ‘Heródoto e a noção de verdade na historiografia grega: um breve comentário’. Revista Historiador, Porto Alegre, ano 04, n. 04, p. 15-22, 2011. Disponível em:
MATIAS, Felipe dos Santos; ROANI, Gerson Luiz. ‘História do cerco de Lisboa: as fontes medievais de José Saramago e a transfiguração literária da história’. Revista Vertentes, São João Del-Rei, v. 32, p. 1-12, 2008. Disponível em:

ROIZ, Diogo da Silva; SANTOS, Jonas Rafael. As transferências culturais na historiografia brasileira: leituras e apropriações do movimento dos Annales no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2012, 296 p.

9 comentários:

  1. Sua comunicação trouxe vários elementos para pensarmos a questão do que é verdadeiro, do que é mentira e do que é ficcional (literário).
    Um bom ponto de partida para a nossa reflexão foi a citação e respectiva "desconstrução" de uma citação
    muito famosa da Poética de Aristóteles.
    Se a história é uma construção, como você afirma, eu aproveitaria a oportunidade para perguntar como trabalhar aquilo que os textos não dizem?
    Quer dizer, como podemos pensar a inclusão de culturas que não produziram material escrito ou que não deixaram rastros?
    Por exemplo, a cultura indígena que se baseia (e se baseou) na oralidade?
    Ricardo Hiroyuki Shibata

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    1. Comunicador

      Sim, Ricardo.

      Esse é um dos grandes desafios porque desde o século XX muitos historiadores vem trabalhando para resgatar os grupos que foram, de algum modo, excluídos da História como os indígenas, africanos, as mulheres, etc. O próprio romance do Saramago discute essa questão dos excluídos da história. Os Portugueses conhecem muito pouco sobre os árabes que anteriormente habitaram Portugal, por exemplo. O diálogo com a antropologia, o contato com os filmes e documentários produzidos no passado pode ser um início. As entrevistas e o diálogo com a História Oral podem também dar algum subsídio. Nas regiões onde o contato é possível seria interessante realizar trabalhos onde os próprio índios pudessem falar de sua história, do seu passado, dos problemas atualmente enfrentados. Algo que já deveria ser feito. O contato com a arte indígena, as histórias que foram preservadas tudo isso deveria ser valorizado e incentivado, o que muitas vezes não acontece. Mas, infelizmente, pela destruição cultural sofrida por diferentes povos existem muitas coisas que nunca saberemos.
      Att.
      Rodrigo Conçole Lage

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  2. Seria relevante usar a literatura, mesmo que ficcional para ensinar História (com livros como por exemplo: "O nome da rosa", A letra escarlate", "O menino do pijama listrado",etc), no sentido de analisar costumes e comportamentos de uma determinada sociedade, como também fatos e lugares históricos? Seria possível levar o aluno a descobrir a verdade histórica por trás do romance?

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    1. Comentador

      Rosimeri,


      Acredito que sim. No estudo da antiguidade a literatura clássica (teatro, poesia épica) sempre foi utilizada como uma fonte a respeito da características da sociedade e da cultura grega e romana. O "Decameron", de Giovanni Boccaccio costuma ser utilizado como fonte a respeito da chegada da peste negra na Europa. A médica Dilene Raimundo do Nascimento tem um texto muito interessante, "Quando a peste aportou no Brasil no ano de 1899" (http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300799806_ARQUIVO_Anpuh2011texto.pdf), que mostra o uso da literatura como fonte histórica. O romance de Daniel "Um diário do ano da peste" também é uma fonte importante sobre a Peste Negra, mas foi usado também para se entender o medo coletivo provocado pela peste. Os romances do ciclo da cana-de-açucar do José Lins do Rego são um retrato importante da sociedade daquele período. Muitos romancistas escrevem sobre a região que viveram e as reproduzem com fidelidade em suas obras. A questão é que será preciso ter um conhecimento grande da obra do autor e de como ele trabalhou essa questão para poder selecionar as obras, ou assuntos a serem trabalhados e do tema que se pretende trabalhar. Acredito que é possível levar o aluno a descobrir sim, mas nesse caso o professor precisa ter não só o conhecimento do que é verdadeiramente histórico, cultural, etnográfico, mas também do que é ficcional mostrando para o aluno o que foi inventado pelo escritor (por exemplo, que em um romance histórico determinado personagem existiu realmente enquanto outro foi inventado para exercer determinado papel) ou como dentro de um acontecimento histórico determinado fato descrito pelo escritor foi inventado por determinada razão. Isso vai exigir do professor não só um sólido conhecimento histórico, mas também um conhecimento dos estudos a respeito daquela obra. Um livro interessante nesse sentido é o "No limiar do texto: literatura e história de José Saramago" de Gerson Luiz Roani. Ele pode lhe dar algumas ideias de como lidar com tais questões.
      Att.
      Rodrigo Conçole Lage

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  3. Boa noite Rodrigo,

    Parabenizo-lhe pela comunicação, considero extremamente pertinente o entrelaçamento dos campos temáticos e conceituais, pois impulsionam a reflexão, ajudando na aceitação de abordagens de perspectivas, onde o trabalho com o conceito de verdade é primordial. Neste sentido, você considera possível o aprofundamento de tal discussão sobre verdade ao ponto de gerar reflexões sobre o conceito de crenças, buscando entender os limites da verdade, a linha tênue entre o ficcional e o não-ficcional?

    Cordialmente,

    Flaviano Oliveira dos Santos

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  4. Comunicador

    Flaviano, eu particularmente vejo a literatura não só como uma obra de arte mas também como uma forma de conhecimento. Assim, acredito que possa ser possível assim, até porque nem sempre essa ideia de verdade foi uma questão importante para os que escreviam a história. Na historiografia da antiguidade ou mesmo posteriormente, na obra de um Maquiavel, existe muito de ficção, como nos discursos relatados, por exemplo. Aí entra a questão das crenças, da ideologia...seria muito interessante ver como essa questão tem sido abordada atualmente por historiadores de outros países. Infelizmente há uma defasagem entre o que temos acesso no Brasil e o que tem sido produzido pelo mundo.
    Att.
    Rodrigo Conçole Lage

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  5. Boa noite Rodrigo, achei seu texto interessante, e tenho uma pergunta bem direta, pode a verdade histórica (essa matéria fundadora da ciência histórica) ser transmitida através da Literatura?
    Aristóteles disse que uma coisa é o que foi, a outra é o que poderia ser, mas e os textos literários que transmitem o que foi, que contém em si não apenas o espelho de uma era, mas a intenção de serem obras propriamente históricas. Não seriam essas obras, mesmo que ditas literárias e parcialmente ficcionais, também obras que contenham a verdade que a ciência histórica almeja e muitas vezes não consegue popularizar?

    At.,
    Karoline Fin

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  6. Comunicador

    Karoline,

    é uma questão polêmica. O papel da literatura mudou muito na sociedade. Hoje ela já não tem a mesma função e o mesmo peso na sociedade que já teve no passado ou no séc. XIX, por exemplo. Mas muitos romancistas no passado para construir seus romances históricos ou biografias literárias fizeram uma abundante pesquisa documental e/ou entrevistas etc. Então a literatura pode sim uma fonte histórica como qualquer documento oficial, por exemplo, que precisa ser examinada com os mesmos cuidados e métodos que qualquer outro documento. Nesse sentido ela pode sim conter a verdade que a história almeja e não consegue popularizar. O diário do ano da peste de Daniel Defoe é um exemplo perfeito desse caso. Apesar do caráter ficcional é considerada por alguns uma reconstrução muito precisa da época. E, consequentemente, a literatura muitas vezes popularizou uma verdade histórica que a ciência histórica não conseguiu e não consegue transmitir porque muitos não leem obras históricas ou porque uma linguagem muito pesada afasta os leitores. O livro "Machado de Assis: a Piramide e o Trapezio" do Raymundo Faoro faz uma análise político-social do segundo reinado toda baseada na obra de Machado de Assis. O problema é que pelo caráter ficcional da literatura o escritor intencionalmente pode e muitas vezes descreve fatos que não ocorreram misturados com os que ocorreram ou descreve os fatos reis de modo diferente do que ocorreram, inventa personagens que não existiram, etc. Isso mesmo num romance dito histórico. Assim, cada obra literária que tem a intenção de retratar a história tem de ser examinada e avaliada com um cuidado maior que um livro histórico. Principalmente a partir do momento que a história passou a se configurar como ciência (procurando também evitar esse tipo de falsificação). Seria quase impossível, hoje, encontrar num livro histórico a existência de alguém que não existiu de verdade. Até que ponto isso seria possível na historiografia antiga é algo a ser discutido. Assim, não creio que exista uma resposta universalmente válida para essa questão, até porque a forma como se escreve e pensa a história hoje é muito diferente do que foi na Idade Média ou mesmo na época do Brasil Império. Acho que cada caso deve ser examinado isoladamente e que diferentes períodos da história vão tornar essa possibilidade mais ou menos provável. Mas eu pessoalmente acredito que a literatura pode e deve ser utilizada para se ensinar a história da mesma forma que se usa um livro didático e com os mesmos cuidados já que nem um nem outro serão uma versão totalmente precisa e fiel da história.
    Att.
    Rodrigo Conçole Lage

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  7. "fatos reais"

    Rodrigo Conçole Lage

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