Luciana Mendes

ECOS DA RECLUSÃO: O ENSINO DE HISTÓRIA PARA ADOLESCENTES EM ESPAÇOS DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

Luciana Mendes dos Santos



No ano de 2015 recebi a proposta de trabalhar como professora de História para turmas formadas por adolescentes em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas privativas de liberdade no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) da Grande Florianópolis. Esse não foi o primeiro contato com adolescentes infratores que tive em minha vida profissional, posto que já havia atuado em um projeto sobre o patrimônio de São Paulo pela Fundação Energia e Saneamento com adolescente em liberdade assistida (LI), no entanto era a primeira vez que seguiria um ano letivo inteiro com alunos em reclusão dentro de um espaço de privação de liberdade. Não aceitei essa proposta como um desafio, no sentido do obstáculo a ser superado ou de uma competição a ser vencida, encarei como uma possibilidade de experiência, colocando-me como sujeito de um processo em que era essencial suspender alguns preconceitos e rever algumas cautelas, dando oportunidades para que as coisas me aconteçam nessa jornada, me expondo. Assim como argumenta Jorge Larrosa Bondia, "É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre" (2002, p. 25).

As instalações do Case da Grande Florianópolis substituíram o antigo Centro Educacional São Lucas, também destinada à internação de jovens infratores e interditada em 2010 por descumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e as normas do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). O Case da Grande Florianópolis é uma unidade modelo para os outros municípios e suas atividades tiveram início em outubro de 2014, com capacidade de atendimento para até 90 adolescentes, sendo 70 em internação definitiva e 20 em internação provisória, segundo a Secretaria de Justiça e Cidadania. A escolarização dos adolescentes era uma das premissas para que a instituição pudesse iniciar suas atividades, e optou-se por estruturar uma escola dentro das dependências do Case em parceria entre a Secretaria de Educação e de Justiça do Estado de Santa Catarina.

Por conta da exposição pela mídia de crimes hediondos cometidos por adolescente nos últimos anos, a discussão sobre os jovens infratores no Brasil se tornou intensa e surgiram projetos de lei que defendem a alteração da maioridade penal para 16 anos sustentados pelo argumento de que as medidas socioeducativas são ineficientes no controle da criminalidade e estimulam a prática criminosa, fortalecendo a crença que a punição e a repressão são as melhores armas. Segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), no ano de 2013 tínhamos 23,1 mil adolescentes privados de liberdade por medidas socioeducativas. Estas medidas são definidas pelo Eca e possuem a função de educar, buscando estruturar o adolescente para que não haja a reincidência do ato e o tratamento é diferenciado por considera-lo penalmente inimputável entre os 12 e os 18, por conta da ausência de maturidade psíquica para entender a gravidade do ato infracional.

O Case atendia em média 35 adolescentes entre internos e provisórios entre 15 e 18 anos, e grande parte deles tinha cometido atos infracionais como roubo e tráfico. As salas de aula são formadas por turmas pequenas, até cinco alunos, que eram divididas inicialmente por "casas", como são chamados os espaços onde os adolescentes vivem, e no segundo semestre foi adotada a seriação. A maioria dos adolescentes evadiu a escola e alguns não eram alfabetizados, o que colocava a nós, os docentes, em situações complexas de ensino, criando a necessidade constante de refletir sobre nossa prática e realizar trabalhos multidisciplinares tentando, sobretudo, evitar mais uma exclusão desses adolescentes do processo educativo.

Em nossas conversas e reuniões, onde conseguíamos trocar nossas experiências, era lugar comum entre os docentes a ideia de que seria muito difícil realizar um trabalho em educação com os jovens sem considerar a vivência de cada educando, sem olhar para as histórias dos nossos jovens e as experiências acumuladas por eles em suas vidas, e refletíamos também sobre como trabalhar com a grande responsabilidade que assumimos de dialogar sobre possibilidades de vida e apresentar opções aos adolescentes que até então só viam a alternativa da criminalidade como caminho viável para uma vida confortável. Assim como defende Paulo Freire, a liberdade não é uma dádiva oferecida a alguém, ela deve ser conquistada em sociedade, "Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão" (1987, p. 29), o nosso processo educativo era baseado pelo diálogo, pelo questionamento e pela reflexão, construindo um espaço onde o educando podia expressar e questionar sua percepção da realidade, buscando formas de se libertar de sua presente situação.

Quando iniciei o meu trabalho os adolescentes tive a possibilidade de construir meu planejamento em conjunto com os educandos. Na primeira semana de trabalho sugeri que todos pensassem em temas históricos que lhes fossem interessantes ou que eles quisessem aprofundar seus conhecimentos. Pedi que eles sugerissem algo que fosse próximo a sua realidade e que lhe chamassem a atenção, porque era a partir dessas sugestões que seria feito o cronograma de nossas aulas, e que se eles precisassem de apoio podiam consultar os livros disponíveis na biblioteca da instituição. Como conhecimento em História dos educandos não estava de acordo com a seriação de muitos, selecionei alguns temas de trabalho sobre a História do Brasil como sugestão, como período colonial e o tráfico negreiro, as revoltas no período monárquico e Ditadura Militar de 1964, pensando que discutir algo da História do país seria mais fácil pela proximidade cultural. Nenhum deles chamou a atenção dos jovens, porque o que eles realmente tinham interesse em saber era sobre as guerras, principalmente sobre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e eles queriam aprender sobre esse período a partir de filmes, histórias em quadrinhos e sobre as armas utilizadas pelos soldados.

Segundo Hobsbawm, não é possível entender o século XX sem entender a Guerra Mundial. E utilizando o conceito de Guerra Total do autor, considerando os dois conflitos como único, tencionei trabalhar a vida dos indivíduos que estiveram envolvidos nos campos de batalha e dos civis que sofreram com os reflexos da guerra, buscando assim uma compreensão dos processos do conflito. Com os adolescentes do Case, eu considerei importante focar nas experiências pessoais da guerra e não apenas na construção do fato, para tentar aproximar e refletir sobre as relações entre os homens em uma situação de desumanização, cenário conhecido por muitos dos jovens em situação de reclusão. Como ferramentas de trabalho eu utilizei o filme Gloria Feita de Sangue (1957), dirigido por Stanley Kubrick, fotografias dos campos de batalha e das armas utilizadas, cartas de soldados e da família de combatentes, e uma história em quadrinhos feita pelo site Capinaremos (www.capinaremos.com acesso: 22 de jan. 2016).

Trabalhamos com uma breve contextualização dos conflitos para que os adolescentes pudessem entender em qual conjuntura a Guerra Total estava se formando com o auxílio da história em quadrinhos.

Nessa etapa utilizamos também slides como ferramenta de trabalho e sugerimos pequenos projetos de pesquisa entre os jovens com o apoio do material presente na biblioteca. Depois de apresentado os resultados da pesquisa, todos assistiram o filme Gloria Feita de Sangue, de Stanley Kubrick, discutindo a banalização da vida durante a guerra como tema central. Os professores de geografia, de português e de ciências começaram a trabalhar em conjunto com o projeto, refletindo sobre a vida do indivíduo em um processo de total violência, onde o sujeito se perde em benefício de algo que é considerado um bem maior. Nas conversas com os adolescentes, a assimilação com as situações de violência vivida por eles era inevitável e essa troca foi muito enriquecedora por possibilitar um diálogo entre a realidade dos adolescentes e as vivências da guerra pelos combatentes e os civis. O compromisso em ser o mais objetivo possível com a história era claro, e não tentamos igualar as experiências desses sujeitos com daqueles que viveram entre 1914 e 1945. Mas o objetivo inicial foi alterado com o processo: não bastava agora apenas entender os fatos relativos à Guerra Total, era necessário refletir sobre essa subjetividade onde o adolescente do século XXI observa os lampejos de sua vivência nessas experiências.

Quando iniciei o trabalho com as cartas dos combatentes um dos educandos chegou a comparar a vida na guerra como a vida numa prisão, porque os jovens criaram relações diretas entre as cartas dos soldados com as cartas que eles escreviam para suas famílias, amigos e namoradas. Separei cerca de dez cartas de combatentes alemães, ingleses, franceses e russos e discutimos como as comunicações se davam naquele momento, como as cartas chegavam aos seus destinos e como elas chegaram até nós. A sugestão de atividade para essa etapa do trabalho foi chamada Ecos da Trincheira, onde os adolescentes deveriam escrever cartas como se estivessem nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, e ela rendeu ótimos resultados. Eles utilizaram toda a discussão realizada com as turmas para fundamentar seus argumentos nas cartas, questionando e refletindo sobre a situação de um soldado nos campos de batalha. Um dos adolescentes, W. de 17 anos, escreveu como um soldado alemão e disse seguinte em sua carta: "Querido amigo, venho firme e forte dizer que a guerra estava fácil, mas com a entrada dos Estados Unidos vai ficar  difícil. A Rússia tinha desistido , mas o que adianta um país forte desistir e outro mais forte ainda comprar a parada". Nas cartas há uma mescla do que eles aprenderam com o que eles estão sentindo no momento. O adolescente M., de 16 anos, inicia sua carta dizendo que sente muita falta de sua mãe agora que ele está longe, e pede que ela não se afaste de sua mulher e de seu filho caso ele morra, outro, A. de 15 anos pede que a família não se preocupe com ele porque ele está lutando pelo o que ele acredita.
O encerramento da atividade foi uma exposição chamada Ecos das Trincheiras, organizada no espaço da biblioteca com as cartas produzidas pelos adolescentes. Nesse espaço a família dos jovens puderam ver os trabalhos produzidos pelos educandos, o que foi emocionante para todos e os estimulou positivamente a continuar produzindo materiais durante o processo educativo. Outra troca interessante foi entre os adolescentes que leram as cartas dos colegas e comentaram entre si, fazendo elogios e sugerindo alterações.

Com este processo, percebo que os estudantes do Case conseguiram pensar historicamente e refletir sobre sua realidade, questionando alguns lampejos do passado em sua contemporaneidade, assim como afirma Walter Benjamin, analisando o passado eles não o conheceram tal como ele foi, e sim buscaram um lampejo desse passado para observar as possibilidades de futuro (LOWY, 2005). E outras possibilidades de futuro é o que devemos buscar em conjunto para os adolescentes em situação de risco.

Referências

BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência IN: Revista Brasileira de Educação [online]. 2002, n.19, pp. 20-28. Disponível em:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
HOBSBAWN, Eric J. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
LOWY, Michael. Walter Benjamin. Aviso de Incêndio: Uma leitura das teses "Sobre o Conceito de História". Trad. Wanda N. C. Brant, Jeane M. Gagnebin, Marcos L. Muller. São Paulo: Boitempo: 2005.

SILVA, Enid R. A., OLIVEIRA, Raissa M. O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Redução da Maioridade Penal: esclarecimentos necessários IN: Nota técnica. Nº 20. Brasilia: Ipea, 2015.

7 comentários:

  1. Cara Luciana.
    Parabéns pelo seu texto único e revelador!
    A área da História pensa muito em sua função social, mas diante da prática, encontra seus desafios. No sua experiência, a História pode dar algum contributo decisivo na formação do jovem infrator, em termos de valores ou conhecimento sobre a vida?
    saudações,
    André Bueno

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    1. Caro André, realmente a prática dstoa muito da teoria. As vezes nos prendemos muito a nossa vida acadêmica e esquece que a vida social é muito mais diversa.
      Quanto a contribuição da história na trajetória desses garotos a construção de um pensamento crítico sobre o processo histórico e a reflexão sobre a formação social que gera as estruturas para a situação em que eles se encontram. Como defende Agamben no seu livro "O que é Contemporâneo", uma maneira de abrir possibilidades de futuro é reabrindo ás possibíidades do passado, e no processo educativo de história fazemos esse trabalho em conjunto com os jovens

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Prezada Luciana,
    Que belo trabalho que fizeste. Achei inspirador, especialmente se tratando de jovens "invisíveis" na sociedade, que estão à margem. Acredito que esse tipo de atividade, onde eles possam ver o resultado da sua própria produção e reflexão, fomente de forma positiva a autoestima deles. Sobre isso, os docentes do projeto notaram alguma alteração? Ou ainda um maior desejo de aprender por parte dos educandos? Parabéns pelo belo trabalho. Um abraço.
    Cyanna Fochesatto

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    1. Prezada Cyana,
      O trabalho educativo com esses adolescentes tem muitas especificidades, e uma delas é o trabalho constante com a auto estima desses jovens que foram desacreditados por toda a sociedade, e a reconstrução da relação de confiança co seus familiares. Todas as reuniões que tivemos com os jovens foram muito positivas e demonstravam a vontade de criar coisas novas, de produzir conhecimento.

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  4. muito bacana seu texto Luciana, ele revela que a educação não somente de história e libertadora. Eu faço parte do conselho das comunidades e vemos que existe falta de programas que venham recuperar os infratores.Seu PROJETO E REVELADOR. No seu ponto de vista teria como aplicar esse projeto também dentro dos presídios para os demais condenados?

    PROF ELOIS ALEXANDRE DE PAULA?

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    1. Bom dia, prof Elois.
      A educação em espaços de privação de liberdade é uma questão problemática na educação nacional, e muitas vezes esse direito é negado com argumentos baseados em preconceitos. No entanto há projetos interessantes em andamento nos presídios inclusive aqui na minha cidade, Florianópolis. Vale a pena conferrir.

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