Paulo Maia

FILMES NO ENSINO DE HISTÓRIA: O CONFRONTO ENTRE A NARRATIVA E OS DOCUMENTOS

Paulo Roberto de Azevedo Maia



Apresentação

Ir ao cinema, assistir televisão ou ver um vídeo na internet se tornaram partes integrantes da vida moderna. Com tantas possibilidades de acesso a materiais midiáticos diversos, é necessário o domínio das linguagens audiovisuais para o desenvolvimento  de jovens acostumados a consumir imagens, mas não fazer a sua devida leitura. A escola é o espaço do desenvolvimento de técnicas de decodificação de todos os tipos de linguagens e os professores de história tem um papel a cumprir na formação de leitores do audiovisual. A proposta desta comunicação é discutir a utilização de filmes no ensino de história através da desconstrução  da narrativa cinematográfica, fazendo a integração entre a teoria, o discurso cinematográfico e o uso de documentos.

A popularização do cinema na sala de aula não significou, necessariamente, um avanço em termos pedagógicos. Os filmes usados como ilustração de um tema ou mesmo como conhecimento em si são estratégias que pouco contribuem para a formação crítica do aluno, pois não geram reflexão, ao contrário, estimulam a uma visão estática da história onde a dinâmica da aprendizagem se esgota em verdades prontas, não representando momentos de construção de conhecimento. Cabe ao professor de história fazer o papel de mediador entre o aluno e o filme, demonstrando como esse é também um produto histórico,  cujas "verdades" devem ser relativizadas já que são construções imagéticas. Explorar as questões suscitadas pelo filme, buscando coerências com o saber histórico e suas divergências, bem como   entender as intenções autorais  são preocupações relevantes para o professor de história.  Uma forma de problematização nas aulas de história é o confronto entre as narrativas e documentos.

Contribuições para a discussão do cinema  na sala de aula

A utilização do cinema na escola enquanto veículo pedagógico não é recente. O instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE)  nasceu em 1937 no governo  de  Getúlio  Vargas.  Apesar da relação entre Estado e cinema ser verificada desde a década de 20, foi o primeiro órgão estatal  brasileiro  voltado  para  o  cinema aplicado ao ensino. Chefiado por Roquete Pinto, produzia conteúdo para alimentar um projeto de  difusão  cultural  dentro  da  perspectiva  de  construir uma identidade  nacional correlacionada com a  ciência e o desenvolvimento industrial do País. A organização resistiu ao fim da era Vargas e sua atuação, sob o comando de Humberto Mauro foi até 1966.

Durante os governos do regime civil-militar, o audiovisual passou a ser uma preocupação de pesquisadores ligados a educação. Na década de 70 foram lançados os livros Recursos audiovisuais para o ensino (DE CASTRO; DA SILVA JR., 1975) e Meios de ensino (GUEDES, 1979).  Ambos trazem uma leitura tecnicista dos materiais audiovisuais, explorando a utilização de forma minuciosa, focando o antes, o durante e o depois da exibição com enfoque nos conteúdos, mas sem problematizações.

A partir da década de 1980,  com o início do processo de redemocratização e o surgimento dos aparelhos de videocassete (VHS), o cinema passou a fazer parte do cotidiano  escolar e o filme se tornou elemento integrante  do universo pedagógico.  As discussões passaram a pautar o cinema como objeto de investigação para educação bem como um instrumento didático. Publicações como  a coletânea Lições com Cinema (FALCÃO; BRUZZO, 1993), organizada pela Fundação  de Desenvolvimento da Educação do estado de São Paulo, reuniu historiadores, biólogos e linguistas para discutir a importância de se criar referenciais teóricos consistentes na utilização do cinema na escola.

Uma grande contribuição para a relação cinema e ensino foi a publicação do livro de  Rosália Duarte Cinema e Educação (2002) quando afirma que o cinema não deve ser visto apenas enquanto recurso pedagógico, mas que a educação e o cinema são formas de socialização que produz saberes, visões de mundo e identidades.. Ao citar Pierre Bourdieu, afirma que o cinema ajuda na criação de uma "competência de ver" que não está restrito ao ato de assistir filmes, mas inserido no universo cultural dos indivíduos. (DUARTE, 2002, p. 19)

Seguindo linha semelhante, mas com a preocupação de facilitar o trabalho de professores de história, Marcos Napolitano lançou seu livro  Como usar o cinema na sala de aula (2003). O historiador discute vários aspectos do problema e especifica a necessidade de pensar no planejamento as competências e habilidades a serem desenvolvidas para determinar o caminho do processo.
O cinema pode ser visto de diferentes formas: como instrumento, objeto de conhecimento, meio de comunicação e expressão do pensamento. Ruggero Eugeni apresenta o cinema como formas de saberes sociais, destacando que ele é, ao mesmo tempo, um "objeto" e um "instrumento". Essa dupla dimensão permite fazer do cinema algo que tem função em si mesmo, pois é conhecimento e pode ser uma ponte para se alcançar outros dimensões culturais. A ideia de objeto aponta ao estudo do cinema através da análise fílmica que pode ser a apreciação estética baseada nas formas ou mesmo em termos de conteúdos atingindo sua natureza ideológica. O estímulo às discussões das várias leituras levam para uma pluralidade de olhares díspares e até desconexos, dentro de uma lógica polissêmica própria das obras de arte. Um  conhecimento  explicito na narrativa observado de forma direta. (EUGENI, 1999, p. 43)

Desconstruindo o filme

O questionamento  da obra cinematográfica deve ser feito de forma criteriosa, afinal, a narrativa, muitas vezes, se distancia dos fatos, o que pode ser visto como um problema de contextualização histórica ou um exercício de liberdade criativa. O filme Bastardos Inglórios de Quentin Tarantino e  O que é isso Companheiro? de Bruno Barreto apresentam narrativas que fogem do que se supõe historicamente correto. Um deixando isso muito claro, o outro se fazendo de relato histórico.

Bastardos inglórios exemplifica a produção cinematográfica histórica ficcional. Um grupo de elite do exército americano, acostumados a matar nazistas de forma cruel, composto apenas por judeus e que planejam a morte de Hitler num cinema de um vilarejo francês. Depois de várias histórias paralelas que integram a trama, eles são bem sucedidos. Temos um roteiro que extrapola  as "verdades históricas" estimulando a imaginação. Não foi feito para ser visto como verdade, mas para especular, divertindo. Não é informativo, e visto por pessoas que conhecem o contexto histórico do nazismo é intelectualmente estimulante e engraçado. O mesmo filme, assistido por pessoas que não tem formação no tema, podem fazer uma leitura equivocada, já que não possuem os pré requisitos necessários para o bom entendimento do enredo, assumindo sua narrativa como verdade histórica. O trabalho em sala de aula  torna-se estimulante se a leitura do filme for orientada pelo professor que pode confrontar documentos e a própria historiografia sobre o tema de tal maneira que o aluno poderá refletir sobre o quanto o diretor se distanciou dos fatos e o quanto isso colaborou para o sucesso da narrativa que não tem finalidades didáticas.

O filme O que é isso companheiro? de Bruno Barreto conta a história do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick em 1969. A liberdade poética do diretor o levou a criar uma história de livre interpretação a partir do livro homônimo de Fernando Gabeira. A forma como agiu, criando diálogos e situações inexistentes seria um mero exercício especulativo, mas o que torna mais delicada a situação foi o fato de que a grande maioria das pessoas envolvidas na trama estavam vivas quando de seu lançamento. A reação foi de grande proporção, com artigos surgindo na grande imprensa e, posteriormente, a publicação do livro Versões e ficções: o seqüestro da história (REIS,  1990) que traz críticas à obra de Bruno Barreto feitas pelos participantes do sequestro. A narrativa do diretor pode ser questionada a partir dos relatos daqueles que viveram a história. Assim como o filme,  os textos dos participantes do sequestro podem ser  analisados não como verdades absolutas, mas como documentos passiveis de crítica. O confronto entre as narrativas e os relatos enriquecem  o estudo da história do período, levando a reflexão dos alunos sobre a relatividade das narrativas históricas e cinematográficas. Trata-se de uma experiência de desconstrução histórica com a intenção de apurar o olhar dos alunos, para perceber posicionamentos ideológicos ou mesmo posturas estéticas conservadoras na representação da história do Brasil.
Esses dois filmes são exemplos da possibilidade de uso de filmes nas aulas de história a partir de uma problematização através do confronto entre narrativas e documentos, possibilitando uma utilização mais eficaz da sétima arte no ensino de história.

Referências

DE CASTRO FERREIRA, Oscar Manuel; DA SILVA JUNIOR, Plínio Dias; DA SILVA, Enio Longo. Recursos audiovisuais para o ensino. São Paulo: Editora Pedagógica Universitária, 1975.
EUGENI, Ruggero. Film, sapere, società: per un'analisi sociosemiotica del testo cinematografico. Vita e Pensiero: Milano, 1999.
FERRO, M. O filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, J., NORA, P. (Orgs.). História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.
GUEDES, Maria Jose. Meios de ensino. São Paulo: Loyola, 1979.
LE GOFF, J., NORA, P. (Orgs.). História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora  da Unicamp, 1990.
Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: Ministério da Educação, p. 538-545, 1999.
NAPOLITANO, Marcos. Cinema: experiência cultural e escolar. Caderno de Cinema do Professor, p. 10, 2009.
____. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Versões e ficções: o seqüestro da história. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.
RIVOLTELLA, Pier Cesare. L'audiovisivo e la formazione: metodi per l'analisi. Cedam, Padova, 1998.
THIEL, Grace Cristiane; THIEL, Janice Cristine. Movies takes: a magia do cinema na sala de aula. Curitiba: Aymará, 2009.



14 comentários:

  1. Prezado Paulo, bom dia!
    Parabéns pelo texto. Compartilho de suas opiniões sobre a utilização do cinema no ensino. O cinema, enquanto sétima arte como bem mencionastes em teu artigo, ao valer-se das ideias de Duarte (2002) quando aplicado a educação, o mesmo é uma das “formas de socialização que produz saberes, visões de mundo e identidades”, acrescentaria também produtora de sentidos através das significações estéticas e poéticas que a mídia cinemática acaba por exercer sobre o público que assiste. Nesse sentido, te pergunto: Até que ponto as narrativas cinematográficas comparadas com os documentos oficiais podem auxiliar no desenvolvimento do estudante? Não seria interessante como nos mostra Ferro (2010), analisar "principalmente a narrativa, o cenário, o texto, as relações do filme com o que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime" (2010, pg. 203). Partindo desses pontos para discutir com os alunos a questão da veracidade dos fatos contidos na película?
    Uma Abraço
    Luiz Paulo Soares

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    1. Paulo Roberto de Azevedo Maia7 de março de 2016 às 12:09

      Prezado Luiz, boa tarde!
      Primeiro gostaria de agradecer pelo comentário bastante estimulante no sentido de estabelecer uma reflexão apropriada sobre o cinema e o ensino de história. A importância que atribuo a utilização de documentos não está aparada em um visão sacralizada de fontes primárias oficiais, mas no potencial analítico gerado pelo confronto entre o discurso fílmico e outros produzidos dentro da temática estabelecida. O filme não fala por si só, ele é um discurso formado por inquietações de seus produtores e diretores, alimentadas pelo seu próprio tempo, e as escolhas geram, intencionadas ou não, saberes que podem limitar ou ampliar visões de mundo. O confronto com documentos permite ir além do filme, acrescentando e não excluindo a proposta de Ferro (2010). As narrativas documentais são tão passíveis de crítica quando o próprio filme e não representam a "verdade" histórica. Estudá-las significa estabelecer articulações com passado a partir do filme, problematizando, mas com a consciência das suas limitações, pois como nos diz Walter Benjamin (1987), "articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo". É uma estratégia para o desenvolvimento da "competência de ver" a qual se refere Pierre Bourdieu.

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  2. Olá! Achei ótima a referência feita aos dois títulos, mas gostaria de saber de um terceiro: Pearl Harbor, de 2001. Seria esse um exemplo a ser utilizado para demonstrar o ponto de vista do "vitorioso", em detrimento dos fatos históricos? Como material visual é deslumbrante, mas se desenvolve completamente na ótica americana, e não dá a devida atenção a todos os porquês envolvidos em uma guerra, além de se tratar de um tema de amplo material histórico conhecido.

    Muito obrigada!

    Daniele Pereira Coelho Nogueira

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    1. Oi Daniele.
      Agradeço pela pergunta. O filme Pearl Harbor é um material interessante para análise histórica já que, como você mesma ressaltou, tem uma abordagem muito unilateral. O romance desenvolvido dá o tom do filme, deixando o ataque como contexto. Não explica suas motivações de forma adequada, desenvolvendo uma narrativa simplista. As imagens do ataque são o seu grande destaque com a violência sendo idealizada. Temos a oportunidade de discutir os apelos emocionais e nacionalistas que atravessam todo o filme. Buscar relatos da grande imprensa ou testemunhos de pessoas que viveram o episódio podem ser possibilidades de confronto da narrativa com documentos. Um confronto com o filme Torra, Torra, Torra, que tem a preocupação de mostrar os dois lado com uma produção de Estados Unidos e Japão, poderia render uma boa discussão.
      Abraços,
      Paulo Roberto de Azevedo Maia

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  3. Boa noite,
    E quais as opções mais recentes de filmes para o trabalho em sala de aula? Quais seriam as sugestões? Gosto de filme "Sniper Americano" pois é nítida a mudança da história real para a narrada.

    Abraços

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  4. Boa noite,
    E quais as opções mais recentes de filmes para o trabalho em sala de aula? Quais seriam as sugestões? Gosto de filme "Sniper Americano" pois é nítida a mudança da história real para a narrada.

    Abraços
    Vinicius Carlos da Silva

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  5. Boa noite,
    E quais as opções mais recentes de filmes para o trabalho em sala de aula? Quais seriam as sugestões? Gosto de filme "Sniper Americano" pois é nítida a mudança da história real para a narrada.

    Abraços
    Vinicius Carlos da Silva

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    1. Boa noite Vinicius!
      Temos muitos filmes para trabalhar. Os mais atuais Trumbo, A grande aposta e O regresso trazem discussões e podem render excelentes análises.
      Abraços,
      Paulo Roberto de Azevedo Maia

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  6. Boa noite, senhor Paulo Roberto de Azevedo Maia.

    Sou estudante de história e sempre fui defensora do uso de filmes em sala de aula, pois acho que realmente eles servem como um meio de instigar o aluno a pesquisar sobre o assunto envolvido, o que por sua vez os levará a desconstrução da produção.
    Gostei muito de saber que tem vários autores que escreveram sobre o tema,com certeza irei usar o seu referencial para aprimorar o meu conceito.
    Como questionamento gostaria de saber se à algum filme que você tenha usado como referência base de um verdadeiro fato histórico?

    Agradecida pela atenção;
    Abraços,

    Paula Michele Carvalho.

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    1. Boa noite Paula!
      O filme citado no texto O que é isso companheiro parte de um fato real, o sequestro do embaixador americano Charles Elbrik, e largamente difundido pela imprensa da época.
      Abraços,
      Paulo Roberto de Azevedo Maia

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  7. Boa noite Paula!
    O filme citado no texto O que é isso companheiro parte de um fato real, o sequestro do embaixador americano Charles Elbrik, e largamente difundido pela imprensa da época.
    Abraços,
    Paulo Roberto de Azevedo Maia

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  8. Olá Paulo Roberto.
    Gostaria de parabenizá-lo pelo texto, e dizer que concordo com o fato de que os filmes são importantes em sala de aula. Eu mesma fui motivada a fazer o curso de História devido a isso: os questionamentos que devem ser feitos acerca do nosso cotidiano. Isso ocorreu devido a forma como a história me foi apresentada no Ensino Médio, cheia de questionamentos e documentos para leitura que nos fazem investigar o passado no tempo presente. Instigar os alunos a pensar através das imagens é algo que ajuda bastante na parte de "construir o pensamento crítico".
    Neste caso, o meu questionamento gira em torno da dúvida sobre como mostrar documentos aos alunos, bem como os filmes, sem que haja cortes e o conteúdo não seja massante?? Afinal, estamos falando de jovens, e despertar o interesse dos mesmos é uma difícil tarefa...

    Abraços,
    Sarah Grasiele Machado.

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    1. Oi Sarah.
      Obrigado pela pergunta. Concordo que o professor deve tomar muito cuidado para não transformar uma prática interessante em algo maçante. O contato com os documentos deve ser feito com certa frequencia de tal modo que o aluno se habitue a essa prática. Ao longo de sua vida escolar ele deve tomar contato com documentos dos mais variados e, de forma progressiva, aumentar o nível de dificuldade de leitura dos mesmos. Desenvolver habilidades de leitura de documentos em nome de um propósito maior, ou seja, alcançar a competência de ver.
      Abraços,
      Paulo Roberto de Azevedo Maia

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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