Samara Nicareta e Valter Abbeg

IMAGINÁRIO SOCIAL E LITERACIA NA EDUCAÇÃO HISTÓRICA

Samara Elisana Nicareta
Valter André Jonathan Osvaldo Abbeg



A busca por explicações sobre nossa realidade complexa torna-se impiedosa a produção de sentido, de identidade, de laços; que permitam não apenas assentar as bases sociais, mas consolidar as diferentes dimensões da subjetividade. Nossos dias atuais, a crescente discussão sobre os sentidos da própria história, seus vieses, suas abordagens, seus materiais, signos, confrontam-se com a lógica capitalista, com a segregação de valores tradicionais, com o contexto escolar pauperizado por políticas educacionais cada vez mais minimalistas, Ocorre uma crescente indagação sobre os atores sociais, suas práticas e como adquirem consciência de seus atos. Assim, adentramos num campo de educação histórica cada vez mais problemático, onde as batalhas são travadas no plano crítico do próprio conhecimento histórico, da consciência histórica. Este estudo visa contribuir com este debate ao delinear algumas aproximações entre concepções do imaginário social e a perspectiva de literacia história. Reconhecemos que...

"Os estudos desenvolvidos não são [devem ser] nem especulativos, prescritivos, nem impressionistas. Devem seguir uma metodologia científica e analisam desempenhos concretos de alunos, em tarefas cuidadosamente desenhadas, com materiais históricos e instrumentos de inquérito." (BARCA, 2001, p.20)

Antevemos assim exigências lógicas de determinado conhecimento histórico, não enciclopédico, uma vez que se reconhece uma ação histórica consciente. Condizente com este pensamento, tem-se o pressuposto do imaginário enquanto uma construção histórica determinante das relações simbólicas, recaindo na rotina, no cotidiano das relações sociais, implicando numa perspectiva que ultrapassa os limites da própria história. Uma relação simbólica que não surge numa justaposição do concreto sobre o imaginário, mas, incide sobre as relações concretas de forma coletiva, tomando vida própria, uma continuidade singular no tempo e no espaço.

Ao reconhecer que cada momento histórico é permeado por uma atmosfera própria, formas de pensar e organizar a sociedade, cultura social, política e econômica são tecidas, se entrelaçam para formar o corpo social ou o imaginário social. Segundo Veyne: "'Imaginário' não é um termo de psicólogo ou de antropólogo, diferentemente de 'imagem', mas um julgamento dogmático sobre certas crenças de outrem." (1984, p.103-4). O ato de pensar sobre o passado, suas crenças, costumes, cotidiano irrompem como julgamentos, verdades que foram construídas sobre a égide de serem únicas, onipotentes, numa congregação analógica. Dessa forma, essa construção sobre o imaginário partindo da verdade se constitui como objeto histórico concreto, se materializa nas relações sociais. Torna-se vivo e constante nas diferentes relações cotidianas, torna-se político, recorrente nas diferentes relações de poder.

"O domínio do imaginário não se limita a isso: a política, queremos dizer, as práticas políticas e não apenas as pretensas ideologias, possuem a arbitrária e a esmagadora inércia dos programas estabelecidos; a "parte oculta do iceberg" político da cidade antiga durou quase tanto quanto o mito; sob a ampla roupagem pseudoclássica com a qual nosso racionalismo banalizador a envolve, teve delineamentos estranhos que só a ela pertencem." (VEYNE, 1984, p.133)

As acepções do imaginário transcendem para a realidade, transbordam para a política, manifestam-se nas instituições, e torna-se imbricadas nas histórias particulares; um difuso na memória das pessoas, este imaginário não pode ser recusado, tal como um pressentimento secreto, substitui a verdade e a realidade, Trata de uma acepção absoluta da verdade envolta pela "fabulação".(VEYNE, 1984, p.130) Desta forma, as construções imaginárias representam a realidade não de um ponto de vista, mas, como própria aceitação da verdade. Compreendendo que a vida em sociedade é uma constante construção histórica, uma alternância de ideologias; um derrubar constante de verdades alcunhadas supremas ou intransponíveis enveredam um constante diálogo social.

Poderíamos considerar que o imaginário, a princípio não é nem bom ou ruim, pois, evidencia uma disputa para legitimar uma verdade que se torna hegemônica na memória e na história das pessoas. Esse conjunto de ideias, esse imaginário conduzem e regulam o tecido social.

"Não existe oposição entre verdade e a ficção que apareça como secundária e histórica; a distinção entre o imaginário e o real não o é menos. As concepções menos absolutas da verdade como simples idéia reguladora, ideal da pesquisa, não podem servir de escusa à amplitude que assumem nossos palácios de imaginação, que têm a espontaneidade das produções naturais e não são provavelmente nem verdadeiros nem falsos. Eles também não são funcionais e não são todos perfeitos; têm ao menos um valor muito raramente mencionado, do qual não falamos senão quando não sabemos dizer exatamente qual é o interesse de uma coisa: elas são interessantes." (VEYNE, 1984, p.139)

Em função de um imaginário ou de visões de mundo, sociedades são construídas ou desintegradas, as percepções não são vazias de conteúdo ou de propósitos, o imaginário ficcional se materializa, forma e deforma a realidade. O ambiente cultural se camufla ou faz mimetismo dessa construção de forma espontânea, já não se sabe mais o que é verdade ou fantasia, aquilo que está posto fora do cotidiano, fora de uma regularidade social passa a ter um valor social. Agrega formas diferenciadas de perceber a atmosfera social, são atrativos constantes na busca pela coerência, pela verdade. Neste sentido, são fixadas como padrão, como forma de padronizar modelos sociais, podem ser materializadas, como nas obras de arte. Partem de uma imagem, que está claramente materializada na sociedade pelo autor, mesmo de forma subjetiva e passam ao ser interpretadas, reelaboradas e revisitadas por outro interlocutor, ganhando novo sentido, uma nova objetividade.

"As imagens estéticas não se deixam nem traduzir validamente para conceitos, nem também são <<reais>>; não existe nenhuma imago sem imaginário; possuem a sua realidade no seu conteúdo histórico, não há que hipostasiar as imagens, mesmo quando são históricas. - As imagens estéticas não são algo de imóvel, invariantes arcaicas: as obras de arte tornam-se imagens por processos, que nelas se petrificam em objectividade, falarem por si mesmos." (ADORNO, 2013, p. 103-4)

A imagem, sua simbolização conquista espaço no imaginário, pois revê e inverte os valores da sociedade ao transmiti-los na forma material e social. A imagem se consolida no imaginário pela sua forma, seu espaço e tempo; tornam-se objetos e objetivas em si mesma; representam o imaginário e criam seu próprio imaginário ao se materializarem.

Entre estes "antagonismos realmente inconciliados não se deixam conciliar mesmo no imaginário; actuam no interior da imaginação e reproduzem-se na sua própria incoerência proporcionalmente ao grau com que insistem na sua coerência."  (ADORNO, 2013, p.193) A materialização da imagem, representa a materialização de seu imaginário, de seu simbolismo, confrontando os demais elementos sociais. A imagem antes meramente estética, torna-se política, coloca-se numa determinada posição de representar e incidir poder sobre os outros.

Nossa percepção de mundo é moldado pelas imagens, por um conjunto imaginário anterior a nossa existência. Formas, cores, padrões estéticos, nuances irão compor nossa história social, traduzindo hábitos, sentidos e costumes. Enxergamos o mundo como um espectador, primeiro conhecemos, depois interpretamos para posteriormente traçarmos nossas construções, portanto, nossas interpretações, concepções, são formadas a partir do já posto, conhecido. O que a princípio era mera visão abstrata ganha contornos práticos e determinados.

"Sempre seguindo o mesmo fio imaginário, é claro que esse espectador jamais tem, com as imagens que olha, uma relação abstrata, "pura", separada de toda realidade concreta. Ao contrário, a visão efetiva das imagens realiza-se em um contexto multiplamente determinado: contexto social, contexto institucional, contexto técnico, contexto ideológico. É o conjunto desses fatores "situacionais", se assim se pode dizer, fatores que regulam a relação do espectador com a imagem, que chamaremos de dispositivo." (AUMONT, 1993, p.15)

Constantemente e de forma efetiva, planificada as imagens formam o universo social, determinam a institucionalização, a técnica e a ideologia que servirá de espectro. Criam dispositivos próprios que regulam a relação entre espectador e imagem. Imprimem condicionantes, arquitetam ações que determinarão o tipo de sociedade, de indivíduos e de instrumentos que servirão de dispositivos controladores. A criação deste imaginário muitas vezes suplanta a representação de realidade que está presente. "A noção de impressão de realidade, a de efeito do real mostram, pelo próprio vocabulário, a dificuldade da questão. Em um e outro casos, trata-se de sublinhar o fato de que, em sua relação com a imagem, o espectador acredita ate certo ponto na realidade do mundo imaginário representado na imagem." (AUMONT, 1993, p.112). O idealizável, formulado inicialmente na esfera mental ultrapassa as fronteiras do pensamento, da capacidade criativa para ganhar o mundo exterior.

Ao formatar ou delinear seus estudos a partir de um imaginário, de um simbolismo, o estudante busca uma significação, intervêm e determina um universo múltiplo, articula vários elementos para alcançar seus objetivos. Abusa das formas, conforma e deforma a imagem proposta, pois ..."Certamente, sozinha, uma imagem não constitui o imaginário, mas o imaginário não pode ser descrito sem essa imagem, por mais frágil ou solitária que ela seja, sem o isto, indestrutível, dessa imagem." (BARTHES, 2007, p.222) Assim, o imaginário depende do contexto e do sujeito, e a partir desta relação, "...as imagens que o sujeito encontra depois vem nutrir dialeticamente seu imaginário: o sujeito faz funcionar, gracas a elas, o registro identificador e o dos objetos, mas inversamente só pode apreendê-los com base nas identificações já operadas. (AUMONT, 1993, p.119). O imaginário torna-se social, apresentável, passível de análise a partir destas identificações, ultrapassando a significação prevista ou esperada de seu criador.

Desta forma, a perspectiva do imaginário social preenche lacunas para o aprendizado histórico, concebendo um sistema de representações simbólicas no qual o próprio sujeito da história está inserido. Compreendendo que...enquanto perspectiva na literacia histórica, ao instrumentalizar o aprendizado histórico, fomentando uma consciência e tomada de identidade por parte do estudante, criando uma capacidade de lidar com o tempo e com os processos históricos de forma crítica. As histórias "...não podem ser tratadas como um acúmulo de eventos" (LEE, 2006, p.134)

Como reconhecimento da própria história e suas "Um conceito de literacia histórica demanda ir além disso ao começar a pensar seriamente sobre o tipo de substância que a orientação necessita e o que as compreensões disciplinares devem sustentar naquela orientação." (LEE, 2006, p.148). Esta substância incide sobre a própria necessidade de reconhecer a dependência entre os processos de significação tanto da imagem quanto do imaginário, pertinentes ao sujeito e suas diferentes categorias. A literacia enquanto processo educativo ganha contornos específicos no limiar da consciência histórica, semelhante ao próprio conceito de letramento aproxima o sujeito do objeto histórico, lhe fornece sentido, interpretação. A história assim se constituí de fragmentos num sentido específico interpretado pelo sujeito, constituí um imaginário acerca de determinada realidade, que é social e concreto nas relações históricas produzidas.

Mapeando a relação entre imaginário e o conceito de literacia histórica, acreditamos ser possível, partindo de uma apropriação histórica, uma busca por elementos identitários, de origens, a construção de signos que estão presentes tanto no imaginário social quanto concretizados de formas variadas, compondo e articulando padrões, modelos ou representações que serão arquitetadas para a formação de uma identidade, de uma certa forma de ver e interpretar a sociedade, a História e suas relações num enlace entre passado e futuro.

Referências

ADORNO, T.W. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2013.
AUMONT, J. A imagem. Campinas: Papirus, 1993.
BARTHES, R. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007.
BURKE, P. A revolução francesa da historiografia: a Escola de Annales (1929-1989). São Paulo: Editora da UNESP, 1992.
CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, vol.5, n.11, pp. 173-191, 1991.
LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
LEE, P. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar, Curitiba, Especial, p. 131-150, 2006.
RÜSEN, Jörn. Razão Histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2001.

VEYNE, P. Acreditavam os gregos em seus mitos? São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

7 comentários:

  1. Não entendi a relação entre imaginário e imagem? Há uma conexão direta, mas qual a perspectiva que distancia teoricamente ambos os conceitos?
    Ana Valeria Abbeg

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    1. Samara Elisana Nicareta9 de março de 2016 às 13:42

      Olá Ana,
      Se considerarmos que uma imagem (seja ela uma gravura, fotografia, desenho, escultura, instalação, etc), ela foi pensada, idealizada por alguém que tem um jeito específico de ver o mundo. Cada pessoa constrói seu acervo de imagens, uma imagética, que lhe é próprio. Mas, mesmo assim, certas imagens são comungadas de forma coletiva, transmitem e influenciam um acervo cultural que pode ultrapassar as fronteiras da História. Esse mesmo desejo, ideário ou até mesmo um conjunto de condutas e comportamento se insere na sociedade de forma consciente e até mesmo inconsciente. Acredito que quando tratada de forma isolada, analisando apenas o que está posto, seria uma forma de distanciamento.
      Grata pela pergunta.

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  2. Prezada Ana,
    A perspectiva do imaginário é a constituição imaterial das relações humanas mais amplas, codificadas e significadas em elementos que podemos denominar de imagem. Assim, a materialização do imaginário é a imagem, o signo em si. Há, mais que uma conexão é uma relação direta entre a imagem e sua interpretação social.
    Valter Andre Jonathan Osvaldo Abbeg

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  3. A perspectiva da literacia é semelhante a perspectiva do letramento na alfabetização?
    Ass. Leticia Trzaskos

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    1. Boa tarde, Leticia
      É possível fazer uma aproximação das duas concepções, portanto compreender a literacia em história, seria também semelhante ao termo letramento para a alfabetização.
      Ass. Valter Andre Jonathan Osvaldo Abbeg

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  4. Boa noite ^^ Gostaria de dizer que achei o texto muito interessante! Minha pergunta é se seria cabível essa relação entre imaginário que vocês apresentam com a forma como foi construída a história indígena?

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  5. Boa noite, Jessica
    A historiografia sobre o índio no Brasil nos fornece inúmeros elementos para compreensão dos fenômenos culturais e religiosos, principalmente relacionando os estudos antropológicos. Todavia, estes estudos não se polinizam tanto na sociedade quanto na escola, nestes campos sobressaí o imaginário do índio: inocente, que anda nú, preguiçoso, entre outros estereótipos construídos para representar uma percepção equivocada da cultura indígena. O próprio elemento de massificação no qual comumente nos referimos a índios como sendo um conjunto único, sem diferenças entre as histórias das tribos, revela a relevância e importância de desconstruir este imaginário, vislumbrando novos caminhos para a consciência histórica.
    Ass. Valter Andre Jonathan Osvaldo Abbeg

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